Jéssica

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RELATO DE UM ABORTO BEM SUCEDIDO DE UMA MULHER SEM NOME:
Nunca pensei que descobrir uma gravidez neste momento de minha vida pudesse me desestruturar tanto, sempre me senti tão independente e responsável, dona do meu destino, a dona da minha vida, na realidade nunca acreditei nesse lance de destino (pelo menos não este que é pintado diariamente, onde o que é nosso já foi previamente traçado) sempre soube que tudo o que viesse a acontecer na minha vida seria consequência de minhas atitudes, atitudes estas que eu julgava maduras e sensatas, até semana retrasada; Bom até ai tudo dentro do previsto a gravidez nada mais era do que consequência de uma atitude irresponsável minha, transar sem estar fazendo uso do anticoncepcional, é contar muito com sorte, vale lembrar que também não acredito em sorte. Caramba! O que eu estava fazendo? Como podia estar sendo tão irresponsável? Como alguém que sempre calculou cada passo que dava podia estar sendo tão irracional e se deixando levar por vontades momentâneas? Sem resposta para nenhuma das perguntas passei para as afirmações:
- Não quero ser mãe neste momento!
- Não me sinto preparada para isso!
Tomada à decisão, comecei a pesquisar sobre o aborto seguro, em meio a tanta informação na internet, por vezes esquecia que ela também desinforma, pela ânsia de encontrar uma solução rápida, esquecia que esta ferramenta que por vezes ajuda em outras pode nos colocar em grandes furadas. Após muita pesquisa a respeito do aborto seguro (porém ilegal no Brasil) decidi que utilizaria o método medicinal, antes de comprar o medicamento estudei muito o suas características: formato, descrição, embalagem, cor do envelope, cor e formato de fonte, onde é fabricado, de onde é importado... Acabei aprendendo, ou reforçando algo que havia esquecido, “nunca pense que já sabe o suficiente”, toda informação a mais é relevante e algumas que podem parecer pequenas podem acabar fazendo a diferença lá na frente. Feita a pesquisa, consegui comprar o medicamento, quase certa de que tinha em mãos o medicamento certo comecei a preparar meu psicológico para as dores que poderiam vir após o uso, li relatos que me deixaram calma e me mostraram que o procedimento era tranquilo, mas li outros que me assustaram, e neste momento o que fica na nossa cabeça? Os relatos que assustam, claro. Chegada a hora do uso (não o fiz sozinha) fiz tudo conforme o recomendado, tomei os 12 comprimidos da maneira correta, os efeitos colaterais foram muito mais tranquilos do que eu podia imaginar, me senti como em um primeiro dia de menstruação, cólicas suportáveis, alguns calafrios e uma febre baixa, sangramento moderado e um leve mal estar, lembrei-me dos relatos que me deixaram assustada e percebi que mais uma vez tinha sido irracional e deixado as emoções me conduzirem e dificultarem de certo modo o processo. Uma semana depois do procedimento marquei uma ultrassonografia, extremamente tensa na clinica fiz o exame, que para minha saúde mental e paz interior, relataram que eu não estava mais grávida, que meu útero estava limpo e que eu estava absolutamente saudável; Não, eu não quis sorrir, eu também não quis chorar, o sentimento que tive foi de tranquilidade, quase como um “dever cumprido”. A esta altura vocês devem estar se perguntando: “Então foi bem sucedido porque a gravidez não prosseguiu?” Repondo que não!
Foi bem sucedido porque felizmente não me deixei levar pelo senso comum e conservador que me diz que tenho de levar a diante uma gravidez mesmo indesejada, bem sucedido porque minha consciência não pesou, porque não tive medo de como seria julgada por quem ficasse sabendo, bem sucedido porque sei que fiz a escolha certa neste momento, porque não me sinto presa a um sistema que me diz que mulher precisa ser mãe, não me sinto presa a valores arcaicos que afirmam que cometi um crime contra a vida; Nada disso fez parte do processo abortivo, nada disso faz parte do pós-aborto, nada disso me faz perder o sono, me sentir menos humana, muito pelo contrário me faz sentir corajosa e complacente, porque não é fácil tomar esta decisão, para quem acredita que com a legalização e descriminalização do aborto a prática vai se tornar comum eu digo que não, porque não é nem nunca foi uma vontade fazer parte das estatísticas, minha vontade sempre foi discutir o aborto como alguém que nunca precisou dele, vencer a luta contra a criminalização do aborto mesmo sem nunca ter precisado abortar, vencer a luta pelas milhares e milhares que já precisaram, por aquelas que conseguiram, por aquelas que não tiveram tanta “sorte”, por aquelas que morreram tentando, por aquelas que sentiram vergonha, por aquelas que foram presas ao tentar, por aquelas que quiseram e desistiram no caminho, dentre tantas outras; Confesso que fazer parte das estatísticas por mais que não tenha sido uma vontade me fez abrir ainda mais os olhos frente a este problema, precisamos falar sobre o aborto, precisamos discutir o tema, precisamos trata-lo como caso de saúde pública, precisamos que o estado assuma responsabilidades frente ao mesmo, precisamos poder abortar de maneira segura e legal, não podemos continuar tratando com descaso algo que poderia ser resolvido de uma maneira tão simples não fosse as cabeças conservadoras que neste país tão plural continuam ocupando cadeiras em assembleias, cabeças conservadoras e retrógradas que continuam elegendo estes, para que tomem decisões em nosso nome, não podemos aceitar homens tomando a frente deste debate, não podemos deixar que valores que não nos pertencem sejam tomados como regra e tidos como argumento para nos criminalizar; Durante todo este processo do aborto eu só podia pensar em uma coisa, e não era em como criar este filho agora ou qual melhor método para abortar, eu só conseguia pensar em: “cadê o meu direito de escolha”, cadê? Eu estou feliz em saber que tudo ocorreu bem comigo, que estou saudável e que não serei responsável (ou irresponsável) pelo surgimento de uma nova vida que poderia não ter boas perspectivas de futuro, não precisarei abortar meu planos para o futuro como fiz com este filho, pois meu direito de escolha diante do que interfere diretamente em minha vida é meu só meu eu não vou terceiriza-lo, eu não aceito terceiriza-lo, eu sinto por aquelas que são submetidas a isso, seja por medo, seja por obrigação ou por falta de opção, sinto por aquelas que veem suas decisões serem terceirizadas diante de seus próprios olhos e não podem fazer nada. Então este aborto foi bem sucedido porque eu venci meus medos, eu venci as imposições da sociedade, eu venci a falta de opções, eu venci o preconceito e eu me sinto livre para falar sobre aborto mesmo sem poder dizer meu nome!

2014 Brasil

Apesar de nunca querer ter precisado abortar a forma como o fiz foi tranquila e não me deixou com sentimento de culpa alguma, talvez o meu contato com o feminismo me empoderou e me fez entender que ninguém dita regras sobre meu corpo além de mim mesma, sem dúvidas isso me ajudou.

Tranquila durante e pós aborto, tensa até encontrar o meio seguro de abortar e a forma como encontrar o medicamento.

A ilegalidade de seu aborto afetou seus sentimentos?

Apenas me deixou bastante chateada em ter de reconhecer o atraso fruto do conservadorismo do país em que vivo.

Como as outras pessoas reagiram ao seu aborto?

Só eu e meu companheiro sabemos até o momento, mas algumas que convivem comigo são bastante conservadoras e provavelmente iriam me julgar, mas tenho certeza de que lidaria bem com isso.

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