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Minha experiência aqui relatada é a carta que escrevi ao progenitor. Ele tirou a camisinha sem eu ver. Depois de muito trabalhar meu ódio, consegui escrever um relato pra ele. Pedi que antes ler, pensasse nas mulheres da sua vida, nas mulheres que ele ama, na mãe, nas amigas, nos amores. E, então, mandei a carta... Os nomes estão em códigos de letras e os locais são referidos como planetas. A carta: Sabe C... essa foi a experiência mais difícil da minha vida. Em alguns momentos, pensei de verdade que enlouqueceria. Em alguns momentos, torci pra morrer dormindo. Então, peço que leia esse email com muito respeito, pelo menos. Vc não precisa concordar. Só peço que respeite. E tente fazer um exercício de entender o quão difícil é para uma mulher que passa por isso. Hoje passei o dia meditando e fazendo exercícios para tirar, pelo menos por hora, o ódio que tenho de vc de dentro de mim. Depois de muito exercício, resolvi somar duas das minhas bandeiras: uma, da luta de gênero, da luta contra o machismo. E, outra, minha missão de transformar o mundo com ações de amor. Esta segunda foi mais difícil. Raiva, ódio... são sentimentos que eu nunca havia provado. E tenho tido uma dificuldade enorme em lidar come eles. E me fazem mal, muito mal. Me fazendo mal, preciso me livrar deles. Pra isso, voltei ali pra minha segunda bandeira, de agir com amor. Bem difícil. Mas depois de muita meditação e muito baseado, decidi fazer o que está ao meu alcance para unir essas duas bandeiras: relatar pra vc, um dos personagens dessa história, o que eu passei. Quero ao menos tentar passar pra vc, enquanto mulher, a gravidade que a gente enfrenta em situações como essa. Preciso ao menos tentar fazer com que vc absorva um pouquinho dessa experiência e, quem sabe, conseguir ajudar na formação feminista de um homem. Vou relatar a partir do meu ponto de vista, claro, pois é o que eu tenho. Começa no dia que a gente se conheceu. E terminamos na cama. Até ai tudo ok. E, então, quando eu dou por mim, vc estava dentro de mim, sem qualquer tipo de proteção, vai saber há quanto tempo. Surge ai a minha primeira indignação. Não, C, não podemos em momento algum diminuir esse ato. Não, não podemos achar qualquer tipo de justificativa pra isso. Isso é violação! Vc violou meu corpo. Vc foi egoísta e só pensou no próprio prazer. E ai cabe uma reflexão: não vamos pensar no fato em si, feito por vc, C, um cara que acredita ser legal e não um monstro... temos que pensar no homem em relação à mulher... temos que pensar que isso acontece o tempo todo por ai, que muitas mulheres são contaminadas ou engravidam (!) por atitudes como essa. Temos que pensar que esse tipo de coisa não pode acontecer. Do mesmo jeito que não se pode matar, estuprar, bater, agredir... pq são ações que resultam de um erro/descontrole mas que interferem no corpo de outra pessoa. Aqui, no caso, no meu corpo, que é tudo que eu tenho. Esse tipo de atitude não pode ter justificativa... não existe nada que seja feito para diminuir isso. Simplesmente não pode mais acontecer! O homem usa do corpo da mulher como bem entende. Converse a fundo com suas amigas mulheres. Pergunte sobre diferentes tipos e graus de abuso que elas já sofreram e como se sentiram. Vc vai se surpreender em como muitas não conseguem nem definir isso. Vc vai entender que o problema é sistêmico... é algo que está enraizado na nossa cultura. O que resulta em um “nossa, mas vc nunca perdeu o controle?” ou, pior “ah, pior para mim, que eu sei que estou com meus exames em dia”. Nesse momento eu desacreditei. Eu vi o quanto que nós, mulheres, estamos longe de conseguir algum tipo de entendimento por parte de vcs. Vi que a luta é muito maior. Hoje, depois de muita submissão, eu consigo não me calar. Mas ainda é difícil demais ouvir qualquer coisa no tom de “ah, mas que exagero!”. Mexe lá no fundo. Eu estava indignada. Não me lembro quando e se isso já havia acontecido comigo. Talvez sim, quando eu ainda me submetia à vontade do macho. Os dias passaram, e eu estava esquecendo disso. Minha menstruação estava atrasada, mas eu tinha tanta certeza de que não aconteceria nada! “Não é possível, seria muito azar!” Oito dias de atraso. E eu irritadíssima... mal sabia que já eram os hormônios... achei que era só uma tpm acumulada. Uma segunda-feira à noite, dia 11 de abril... meus seios começaram a doer muito, muito mesmo. Foi o primeiro momento que cogitei essa possibilidade. Fui correndo comprar um teste de farmácia. Comprei o melhor e mais caro, para não deixar dúvidas. Dormi, para fazer pela manhã, com a primeira urina do dia. Acordei, fiz o teste. Foi terrível. “Meu deus! Tem uma criança nascendo dentro de mim! O que eu vou fazer?” Pior... “Aquele desgraçado! Maldito” (sim... me referindo a vc). Chorei... chorei muito, não conseguia respirar. Logo eu, que sempre sonhei tanto em ser mãe, que sempre quis tanto isso. Mas assim? De um cara que me violou? Que fez eu sentir o machismo tão na veia. Como eu vou falar de feminismo com essa criança? Como vou explicar que é fruto de uma atitude horrível, e tão banalizada? Como vou explicar que esse tipo de coisa não se faz e não se permite fazer, se ela é fruto disso? E por que raios eu não tomei a pílula do dia seguinte? Sim, eu me perguntei isso muitas vezes, todos os dias... mas por quê??? Como eu pude ser tão ingênua... arrependimento daqueles que mexe lá no fundo do estômago, sabe? Me recompus. Fui atrás de um exame de sangue. Fiz logo 2, em laboratórios diferentes. Quando peguei o resultado de cada um, choro. Era isso mesmo. Estava dentro de mim. E eu queria tanto ser mãe.... mas então eu pensava na figura paterna... e lembrava do meu pai... lembrava do quanto minha mãe sofreu e das cenas de machismo tão presentes na minha casa. E tomei a decisão: “eu não quero esse pai”. Fiquei mais tranquila com a decisão, e comecei a digerir isso. Então, lembrei de quando fiz uma consulta com uma mãe de santo, no terreiro de candomblé que eu frequentava. E lembrei dela me dizendo, enquanto eu perguntava sobre outras coisas “olha, tá aparecendo toda hora aqui. Tem uma criança querendo vir pra vc. Seu filho ou sua filha já está pront@, querendo te conhecer logo”. Minha cabeça deu um nó. Será que era agora que essa criança viria? Mas justo agora, justo com esse pai? E ai eu voltava de novo pra razão: “não, não é esse o pai... ela vai ter que esperar”. (abre parênteses) Aqui, C, não vem ao caso saber se vc é ou não uma pessoa ruim. Nem me interessa mais isso e quero conseguir sair desse julgamento. Só entenda que eu me senti violada. Que talvez eu jamais consiga olhar pra vc com bons olhos. E nesse momento, que eu estava vivendo isso tão à flor da pele a indignação tomou proporções épicas.. me pegava sempre pensando: “Porra, e eu estou passando por isso por causa de um capricho dele, pq ele quis sentir mais prazer sobre o meu corpo”. (fecha parênteses) Nesse momento, eu já tinha umas 15 pessoas ao meu redor, fazendo todo tipo de pesquisa, sobre métodos, sobre os remédios, falando com médicos, buscando meninas que já tinham passado por isso para eu conversar. Meus amigos foram extraordinários. Essa experiência toda fortaleceu muito nossos laços e nos deu um outro olhar sobre toda essa questão de homem e mulher. E vc não podia fazer nada, não é mesmo (irônica)? A criança teria que esperar... Começou ai o sentimento de culpa. Já era quarta-feira, dia 13. Apesar da culpa, estava realmente decidida. Mas precisava me comunicar de alguma forma com essa informação que recebi de Mãe D há alguns anos atrás. Quinta-feira é dia de gira no novo terreiro que frequento. Era a hora. Fui até lá, muito tranquila, meditando. Chegou meu momento de ser atendida (era dia de cabloco). Contei. E desabei num choro incontrolável. “Quero pedir desculpa... não quero ser uma pessoa ruim... se eu tomar essa decisão, eu vou estar sendo uma pessoa ruim? Essa criança vai me perdoar?”. Ouvi muita coisa, falei muita coisa, pensei muita coisa, rezei... recebi uma vela azul-claro e fui até o aterro dos Ibegis, acender e pedir perdão. Conversei com esse ser que já quer vir. Pedi que esperasse um pouco, que eu tbm quero muito conhecê-l@, agora mais que nunca. Mas, infelizmente, não ia ser o momento. Me senti perdoada e me despedi da criança. Estava mais tranquila. Dia seguinte era o dia de tomar o remédio. Meus amigos fizeram a maior parte da busca... eu tinha muitos contatos de remédio, de pessoas que já haviam tomado. Pq eu estava começando a pirar, a sair da caixinha... e não conseguia executar muita coisa. Passei o dia de jejum, apesar do enjoo que já começava me incomodar. Meus amigos ficaram do meu lado. Assisti um filme e fui deitar. T e B dormiriam na cama comigo. Tomei os dois comprimidos e coloquei os outros dois na vagina. Estava muito tranquila, tinha certeza que daria certo. A T passou a noite em claro, vendo se eu estava sangrando, com febre ou qualquer outro sinal (a essa altura já tínhamos lido muita coisa sobre os perigos do remédio, mas uma vez que a mulher toma essa decisão, ela é capaz de qualquer coisa). Era para eu acordar por volta das 5 da manhã, com sangramento e muita cólica. Acordei por volta das 7 horas sem sentir absolutamente nada. Fiquei estarrecida. Não conseguia emitir uma palavra. As pessoas vinham falar comigo, para eu fazer alguma coisa, exame, etc.... eu não conseguia sair da cama. Devo ter ficado umas 4 horas estática, na esperança de algum sangramento. Meus amigos maravilhosos começaram as novas pesquisas pra entender o que tinha acontecido. A tia obstetra de um amigo deu a possibilidade: ovo-cego. Não adiantaria o remédio se fosse realmente isso. E se fosse, ocorreria o aborto naturalmente. Fiquei levemente mais tranquila. Era uma luz no fim do túnel. Na segunda-feira, iria para o hospital. Segunda acordei, fiquei cerca de 2 horas na cama (começava essa rotina de não conseguir me levantar, depois de dormir cerca de 10 horas – eu me sentia triste demais e, de novo, “Porra, e eu estou passando por tudo isso por causa de um capricho dele, pq ele quis sentir mais prazer sobre o meu corpo”). Fui para o pronto-socorro. Não falei nada para os médicos (tinha medo da reação deles). Algumas boas horas até eu ser finalmente encaminhada para o exame, a ecografia. Fiz, o médico olhou, olhou e disse “olha, não está dando para ver o embrião ainda”. Me enchi de alegria! Era isso mesmo! O tal do ovo-cego! Levei o resultado até a ginecologista e falei “Dra., preciso te falar... eu tentei tirar essa criança. Preciso saber se ela está dentro de mim ainda, pq tentarei tirar de novo”. Ela me disse para esperar mais uma semana e refazer o exame. Se fosse ovo-cego (o que era mais provável), faria-se a curetagem. Se não, eu ainda estaria em tempo de tomar a decisão que quisesse. Estava melhor. Consegui trabalhar um pouco e até sair um dia. Mas ainda muito ansiosa pra ver essa história resolvida logo. Nessa semana tive muito enjoo, não conseguia comer nada, só abacaxi e suco de limão. Estava irritadíssima (uma montanha-russa de humor que perdurou até o fim da história), fui extremamente indelicada e muito grossa com muitos que estavam ali, de plantão pra me ajudar. Minha cabeça já não era a mesma. Esperei mais uma semana e voltei ao hospital. Já estamos, aqui, em 25 de abril. A ginecologista não era a mesma. Mas eu só precisava de uma ecografia. Inventei qualquer coisa e consegui o pedido médico. Mais algumas horas na fila e fiz o exame. Assim que o médico introduziu o instrumento dentro de mim, ouvi o “tum-tum tum-tum”. “Meu deus, não é possível que isso é um batimento!”. “Ei, doutor, que barulho é esse?”. “Uai mocinha, esse é o coração do seu bebê!”. Não era um ovo-cego. Saí de lá atônita, de novo. Não conseguia conversar, não conseguia comer, não conseguia chorar. Não estava acreditando naquilo. E, de novo “Porra, e eu estou passando por tudo isso por causa de um capricho dele, pq ele quis sentir mais prazer sobre o meu corpo”. Voltei pra casa desolada. Os enjoos parecem que pioraram 100x. Não conseguia sair da cama. Que grande merda! Me recompus, de novo. Vamos atrás de outro remédio. Mas.... e o coraçãozinho dele? E se essa criança quiser mesmo vir agora? E se for aquele ser que a D se referia, querendo tanto vir pra me ajudar a evoluir em alguma coisa? Mas agora tbm já tomei o remédio, pode nascer com alguma anomalia. Pirei. Eu já não era a mesma... mesmo! As pessoas se dirigindo a mim com certo medo. Pensei que seria legal morrer, e não ter que passar por mais nada. Eu tinha um trabalho pra entregar no final de abril, e não relava nele há 3 semanas. E sempre aquele martelo na cabeça “Porra, e eu estou passando por tudo isso por causa de um capricho dele, pq ele quis sentir mais prazer sobre o meu corpo”. Ai parava pra pensar o que vc estaria fazendo. Sim, devia estar receoso, pensativo, com o coração apertado. Mas C, vc entende o quão diferente é? Olha o que eu já tinha passado até aqui. E vc não tinha feito sequer uma pesquisa sobre isso. Buscado pessoas que tiveram essa experiência. Nada... eu não tinha recebido qualquer tipo de apoio de vc. Claro que eu não queria conversar com vc ou te encontrar. Vc era a última pessoa que eu precisava do meu lado. O que não te impedia de ir atrás de informações, de remédio. Vc tinha que ter saído imediatamente de onde estava. Devia ter pesquisado tanto quanto eu pesquisei. Mas não, afinal, a segunda justificativa para o machismo da história “eu estava em um sítio, não tinha o que fazer”. Tinha. Tinha muita coisa que vc poderia ter feito. Mas não era seu corpo... não era sua culpa de fazer um aborto... não era seu medo de ser presa... Foi muito mais fácil pra vc. Fui atrás do segundo contato de remédio. Dei uma leve animada. Minha equipe toda falou com médicos. Conseguimos as instruções de uma ginecologista de “Vênus”, pela B. “Tomar 8 comprimidos”. 29 de maio, dia da segunda tentativa. Fiquei com medo, muito medo. Medo de não fazer efeito de novo, medo de ter uma hemorragia, medo de morrer, medo de ficar infértil, medo de perder meu útero.... e ainda aquele enjoo que piorava mais e mais a cada dia. Mas era o único jeito... Acordei cedo e não comi nada, aproveitando o jejum da noite. Tomei os comprimidos. 9:30 dois via oral e dois pela vagina. 12:30 mais dois via oral. 17:30 mais dois. Neste último momento eu já estava desesperada. Já haviam se passado horas, e nada. “Não vai dar certo de novo”. 18h, 18:30, 19h.... e nada. Ai eu fui pro inferno pela segunda vez. Fiquei deitada por horas... até o dia seguinte. Não queria que ninguém chegasse perto de mim. “Agora fodeu! Agora fodeu!” “Essa criança quer vir mesmo”. Mas eu já tomei tanto remédio! Nesse momento eu pirei, fiquei louca mesmo... achei que não ia voltar ao normal mais. Minha cabeça deu um nó. E aqueles enjoos terríveis... e o trabalho lá atrás... Fritei. Foram dias sem sair da cama... muito choro... muita culpa... muita indignação... e o martelo “Porra, e eu estou passando por tudo isso por causa de um capricho dele, pq ele quis sentir mais prazer sobre o meu corpo”. Dias na cama. Estática. Louca mesmo, completamente fora de si. Precisava voltar para o hospital. Precisava ter certeza. No fundo, achava que pelo menos o feto tinha morrido, só não tinha saído. E ai mais relatos: “ah, uma amiga tomou e não aconteceu nada, sangrou depois de 5 dias”, “ah, uma amiga tomou e não aconteceu nada pq estava com uma bactéria que não permitia o aborto”. Dia 2 de maio voltei para o hospital. Eram duas médicas. Foda-se. Joguei a real: “olha, estou grávida, já tentei tirar duas vezes com remédio e nada aconteceu. Preciso saber se ainda está aqui, porque vou atrás de uma clínica”. Elas começaram a me falar do perigo que corri. Que 2 meses antes perderam uma paciente que havia tentado abordar. E colocaram no meu prontuário “tentou abortar duas vezes com Cytotec”. “Dra., por favor, apague isso! Se alguém pegar eu posso ser presa!”. Ela não quis apagar e me garantiu que nada aconteceria. Senti muito medo. Fiz uma nova ecografia. Coração de novo, embrião ok. Voltei na médica com o resultado. Conversamos muito. Ela se dizia contra o abordo (sim! Uma ginecologista-obstreta, mulher, conta o aborto), mas ouvindo minha história, havia se sensibilizado. “Mas como assim ele tirou a camisinha sem vc ver?”. “Pois é doutora, acontece muito por ai”. Eu precisava de uma clínica. Meus amigos maravilhosos não paravam as pesquisas. De novo, em menos de 24h, eu tinha o contato de 3 clínicas na mão, com cerca de 10 referências. Pedi um tempo pra eles. Precisava pensar. Será que eu deveria ter? Mas agora, depois de tanto remédio? Não. Vou pra uma clínica. Liguei na clínica escolhida, a mais bem recomendada. Era dia 2 ou 3 de maio já. Poderia ser atendida já no dia seguinte. Marquei para o dia 5. Comprei a passagem e fui. E ai, nestes últimos momentos, sua maior contribuição foi me enviar um link de ervas abortivas (!!!!!). Vc consegue imaginar, no estado que eu estava, passando por esse turbilhão de pensamentos que hoje compartilho com vc, receber uma p* de um link de ervas abortivas do cara do “Porra, e eu estou passando por tudo isso por causa de um capricho dele, pq ele quis sentir mais prazer sobre o meu corpo”? Indignada!! Eu não acreditava que vc podia ser tão displicente! Nesse momento C, se vc conseguisse enxergar um pouquinho do mundo feminino, vc teria, no mínimo, falado “G, existem essas e essas ervas, toma dessa e dessa forma, vende em tal lugar. Quer que eu busque e entregue pra T?”. Mas não. Pq vc estava no seu trabalho e não podia fazer nada, não é mesmo? E quando vc sugeriu que eu fosse em um hospital público? Meu deus!!! Nesse momento eu desacreditei! Achei vc a pessoa mais egoísta do mundo! “Como ele pode sugerir que eu faça em qualquer lugar depois de tudo que passei??? Será que ele tem ideia do que é tomar tudo isso de remédio?”. Nessa altura a indignação por vc e pelos homens já tinha virado ódio. Eu queria que vc sofresse. Achava muito injusto estar passando por tudo aquilo. Eu precisava que vc sofresse de alguma forma! Comecei a desejar seu mal. Queria que algo horrível acontecesse com vc. Queria contar pra Marte* inteira tudo que vc tinha feito e tudo que tinha me falado. Ai a pérola. “G, falei com a minha mãe, ela disse que se ninguém quiser ela pega pra criar... e sei lá, de repente acho que isso poderia ser bom”. Eu não podia ver isso de nenhuma outra forma. Já estava tomada pelo ódio. “Agora, que a mamãe falou que qualquer coisa ela abraça, ele quer ter???”. Por que o homem tem sempre uma mulher que resolve as coisas pra ele? Eu fui atrás de tudo (informação, contatos, remédio, médicos, experiências) e ele não fez nada pq estava no SEU trabalho. Arrumou um filho, e a mãe abraça. Ai de repente, coincidentemente quando a mãe diz que abraça, vc começa a pensar em ter. Nesse momento meu ódio por vc já não tinha mais volta. Foda-se. Preciso resolver isso. Afinal, é o meu corpo e minha saúde que estão em jogo. Cheguei em Jupter*. À tarde, fui na clínica com uma amiga. O médico era ótimo! Me tranquilizou bastante, apesar dos relatos sobre histórias com cytotec que deram bem errado. “Meu deus, eu podia ter morrido, mesmo!”. Marquei o procedimento para o dia seguinte, às 10h. Saí da clínica por volta das 17h e quando estava saindo a moça me alertou “oh, o procedimento é em dinheiro, ok?”. Mobilizei a equipe de amigos maravilhosos. Várias pessoas. Em menos de 1 hora eu tinha 4 mil reais na minha conta. Afinal, era o meu corpo, eu não tinha outra saída. Chegou o dia. Tudo muito tranquilo. Dez minutos de procedimento. Saí da clínica outra pessoa! Pronto! Tinha acabado aquele pesadelo! Não precisava mais ter medo de morrer, de perder meu útero ou de ser presa! Os dias em Jupter* Foram maravilhosos! Revi amigos, conversei, meditei. E foi ai que tudo que restou foi minha indignação e ódio por vc. Não peço que concorde. Só peço que tente entender o que eu passei. Que tente respeitar o meu desespero e minha indignação. E ai fiquei pensando... “mas além de tudo, ele não está nem cumprindo com a parte financeira?”. Mesmo que tivesse sido um erro de ambos... nem a metade da grana vc agilizou. E ai C, eu penso muito nas mulheres por ai. Naquelas que não podem contar nem com a pensão do cara. Que na hora que acontece algum imprevisto com a cria, o discurso é o mesmo: “Mas eu não tenho de onde tirar, vc quer que eu faça o o quê? Mas ó, estou aqui para o que precisar!!”. (?????) A mulher sempre dá um jeito. Porque o corpo é dela, a cria é dela. Uma mulher é capaz de vender o próprio corpo em prol da sua cria ou do seu corpo. Mas o homem nunca vai entender o que é isso. E então veio a cereja do bolo de 100 andares. Sua mensagem ontem. “Vc está histérica! Isso só vai me irritar!” “Vc paga de louca!” “Pq vc não tomou a pílula?” “Eu não te obriguei a fazer nada”. Ontem eu chorei ao ouvir isso. E choro agora de novo. Meu deus, como esse ser humano tem coragem de me falar essas coisas depois de tudo isso que eu passei?? De novo, como está longe de termos algum avanço nesse sentido. O C, que morou na Plutão [república que tbm morei], com mulheres maravilhosas, que se diz um militante, tem esse tipo de atitude? É estarrecedor, sabe. Do fundo do meu coração eu gostaria que vc aceitasse que não há o que falar, que vcs nunca vão se apropriar desse sentimento de uma mulher que passa pela maternidade, pelo aborto, pelos fantasmas morais. Sabe C, essas são as frases que os agressores usam. Frases do cara que espanca a mulher e se justifica dizendo “ah, ela é uma louca”. Por favor, se vc não quer se tornar um deles, não repita o discurso deles. Isso é muito sério! Precisamos eliminar isso do nosso mundo, sabe. Vc tentou passar a responsabilidade pra mim com “Pq vc não tomou a pílula?” e “Eu não te obriguei a fazer nada”. Essa responsabilidade não vai ser minha. Essa responsabilidade é sua! Hoje, pensando em tudo, decidi compartilhar esse relato com vc sobre minha visão da história pq é tudo que me resta fazer. Num sentido clichê de “tentar tirar uma lição positiva de tudo”. Então estou aqui, enquanto mulher, tentando te sensibilizar enquanto homem. Pq vc não vivenciou toda aflição. Um dia, se vc encontrar a T, pergunte pra ela. Se um dia, vc encontrasse o M (que mora comigo) seria interessante ouvir a versão dele. Ele, homem, criado na sociedade conservadora, e o aprendizado que ele teve com tudo isso. De como ele se tocou de como vcs (homens) não fazem ideia do que acontece na cabeça e no corpo de uma mulher que passa por isso. Talvez, se não tivesse sido como foi, e vc tivesse tido a oportunidade de ver de perto toda essa aflição que eu passei, medos, indignações, enjoos, etc., vc poderia entender um pouquinho da minha postura, entender um pouquinho de feminismo. Sabe C, hoje eu consegui escrever esse relato, de coração aberto e sem ódio. Mas não sei por qto tempo posso ficar tranquila assim. Pode ser que amanhã eu já te odeie de novo. Pq isso transformou minha vida. Pensar que eu poderia ter morrido, que eu poderia perder meu útero... que eu vivo em um país machista que, além de tudo, pode colocar mulheres como eu (e sua mãe, olha só [a mãe dele já fez um aborto] na cadeia. Gostaria muito que vc aceitasse que não vai conseguir entender o que eu passei e que, na pior das minhas reações, o máximo que vc pode fazer é ter muita paciência. Eu acho que hoje vc ainda não vai digerir isso do jeito que eu gostaria. Vc ainda é novo e visivelmente engolido pelo nosso machismo (o que é muito comum, inclusive entre caras “legais”! Precisamos, primeiro, aceitar isso pra depois evoluir nesse sentido). Acho que vc vai vivenciar outras experiências, vai olhar para as mulheres de outra forma (é o que eu espero com essa carta enorme e chata) e que, daqui a alguns anos, depois de muito pensar em tudo isso, depois de prestar atenção em outras tantas experiências parecidas, vc, finalmente, entenda talvez um pouco do que isso foi pra mim. Acho que vc não vai mais fazer isso (tirar a camisinha sem a mulher ver). Mas reflita sobre o que vc me falou. Eu posso ter errado tbm, não me excluo disso. Mas tente olhar para o universo feminino de outra forma. Não reproduza os dizeres dos agressores, por favor. Precisamos de homens do nosso lado. Vc faz parte de uma das coisas mais importantes da minha vida, que foi a Plutão. Eu realmente gostaria que vc tentasse se apropriar desse debate. Não julgue as atitudes de uma mulher que passou por isso. Não chame de louca uma mulher que acabou de passar por isso, porque em muitos momentos eu realmente achei que fosse enlouquecer. Foi muito, MUITO difícil... FOTO: "A DEUSA QUE É TRÊS" "A chave da deusa tríplice abre muitas portas que dão acesso às camadas mais profundas do nosso ser". A deusa tríplice vive no lado ativo da psique feminina e toda mulher deve aprender a identificar suas facetas, para depois trabalhar com ela. Perceber como ela se manifesta em nosso interior é importante para evitar que este espaço seja inundado por uma destas facetas, anulando por completo a nossa vontade e impedindo-nos de exercer o nosso direito de livre escolha.