Daniela Moraes

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É fácil defender o aborto das outras. Difícil é decidir quando a gente precisa fazer.

2019 Brasil

Vivi um final de semana de luto. Combinei com o pai de que quando estivermos melhor, faremos um ritual juntos, para nos despedirmos de nossa filha. Sabemos que a partir de agora temos 3 filhos, ainda que o terceiro não esteja conosco. E ela sabe que foi a melhor escolha para a família inteira. Quando meus filhos crescerem quero contar pra eles, para que entendam e sejam responsáveis caso isso venha a ocorrer em um relacionamento deles. Fiquei tranquila por ter me sentido apoiada por meu companheiro nos momentos em que mais precisei dele. E com o fato dele ter concordado com o ritual para nossa filha. Nunca imaginei que passaria por algo assim - e aos 43 anos. Mas agora creio que completei o ciclo de tipos de parto - cesárea, natural e aborto induzido. Me sinto uma mulher completa, por mais controverso que isso possa ser. Ter passado por isso me faz compreender melhor o drama de milhares de mulheres que precisam passar por isso. E me faz ter a certeza de que preciso me engajar nessa luta, de que a mulher precisa ter o direito de decidir sobre o que quer fazer com o seu corpo. E que precisamos de mais informações a respeito. Sou grata à women on web, o único espaço que fiquei segura para ler e buscar apoio. Sou grata à parteira que me cedeu os medicamentos. Sou grata às amigas C, C, D, D e N. Sou grata ao meu companheiro. E aos meus filhos que, embora não estavam sabendo o que aconteceu, me apoiaram da maneira deles.

Abortar com os medicamentos foi mais tranquilo do que eu imaginava. Sou mãe de dois meninos, o primeiro nascido de cesárea e o segundo de um parto natural domiciliar assistido. Quando fiquei sabendo que estava grávida novamente, liguei para a parteira que me ajudou no parto do segundo. Ela faz parte de diversos movimentos feministas e tinha certeza que ela podia me ajudar. E ela tinha um último kit da women on web, de quando ainda estava chegando ao Brasil. Me avisou que já estava vencido, mas que a data de vencimento era mais porque o remédio precisava de uma data de vencimento, que a chance de dar certo era grande. Aceitei. Perguntei o preço: de graça! Ainda que ela more em outra cidade - bem longe -, o universo conspirou a meu favor e uma outra amiga tem familiares naquela cidade e estava de férias por lá - e estava no fim das férias. Pedi para ela que me trouxesse uma encomenda, que era questão de vida ou morte - mas não expliquei o que era. Ela trouxe e dois dias depois tomei a primeira pílula, que faz com que os hormônios cessem. No dia seguinte, 24 horas depois, coloquei as outras quatro embaixo da língua. A primeira pílula só me causou um pouco de vertigem umas 20 horas depois. As quatro embaixo da língua me deram calafrios assim que derreteram na minha boca. O pai ficou comigo durante todo esse processo. O meu maior medo era de não dar certo. Quatro horas depois e sem nenhum sinal de sangramento, coloquei mais uma pílula (a última que tinha) embaixo da língua. E então começou a sangrar. Imaginava que seria muito sangue de uma única vez. Mas foi aos poucos. No dia seguinte não fui trabalhar... umas 12 horas após ter tomado as quatro pílulas senti cólicas mais fortes. Sangramentos. E os sintomas da gestação passaram (principalmente seios e barriga inchados). Hoje faz uma semana e dois dias que abortei. Ainda tenho um pouco de sangramento. Em duas semanas farei um teste de farmácia para confirmar o aborto. Mas eu sinto que não estou mais grávida, que tudo deu certo.

Já tenho dois filhos e sou separada. O pai da bebê abortada tem duas filhas e é separado. Nenhum de nós pensa em ter mais filhos ou filhas. Estamos em um momento de reconstrução de nossas vidas e identidade, após termos nos fundido com nossos filhos e quase nos perdido nesse processo. Sabe aquele lance de colocar a máscara de oxigênio primeiro em você para depois acudir o próximo? Pois... não teríamos condições de cuidar dessa bebê.

A ilegalidade de seu aborto afetou seus sentimentos?

Mesmo com essas pessoas mais próximas, todas as conversas que trocamos, via whatsapp, eram deletadas imediatamente para não deixar rastros. Quando me dei conta da ilegalidade do aborto - ou seja, de acordo com as leis do meu país estava praticando um crime cuja penalidade poderia ser a minha própria prisão - isso me fez pensar diversas vezes. A princípio havia pensado em realizar o aborto em uma clínica. Quando fui checar os dados do médico - que já está bem idoso - e descobri via internet que ele já havia sido preso, fiquei pensando na possibilidade disso acontecer com ele enquanto estivesse realizando o meu aborto. Assistir ao documentário Vessel ajudou muito a compreender que ainda assim eu tinha o direito de decidir sobre o que é melhor para o meu corpo. E também no documentário me senti segura pra decidir pelos medicamentos, ao invés de um processo mais invasivo, como a cirurgia clínica. Ainda assim, a maneira de conseguir os medicamentos também era uma questão: como ter certeza de que adquiria as pílulas certas num mercado ilegal?

Como as outras pessoas reagiram ao seu aborto?

Poucas pessoas sabem. Apenas as amigas mais próximas e o pai do bebê. Tive o apoio de todas estas pessoas, sem nenhum julgamento. A minha primeira reação, ao saber que estava grávida foi pensar em abortar. Uma amiga muito próxima, que se dispôs a emprestar o dinheiro do procedimento, me disse: "se despede desse ser e pede desculpas para ele". Após essa fala eu parei pra pensar antes de decidir. Entendi que o que estava prestes a fazer era algo muito sério. Envolvia vidas. Avisei para as amigas e para o pai que precisava de uns dias para pensar e entender o que realmente queria. Passei um final de semana pensando. Sou terapeuta reikiana. Apliquei reiki para esta situação e tinha crises de choro. Já tinha tomado a minha decisão, mas foi ótimo essa tomada de consciência. Nesse fim de semana fui limpando a casa e lembrando das dificuldades e da solidão de ser mãe nos primeiros anos. Na tarde do sábado vi uma mãe com um bebê no colo em um espaço cultural de "adultos"... e ela tentando interagir com um grupo de pessoas sem filhos - e o quanto ela havia sido rejeitada. E fui entendendo, cada vez mais, que não queria passar por isso de novo. Não agora que os meus filhos estão começando a ter mais autonomia (um tem 4 e o outro 6). E eu estou conseguindo me realizar na minha carreira. Viajar, fazer o que gosto. Prestes a mudar de emprego. Teria que interromper todos esses planos. E o pai está subempregado e passando por diversas crises depressivas. No domingo, apliquei reiki novamente e chorei baldes novamente. Foi uma forma de luto, de despedida, de entender que tinha um ser dentro de mim; alguém que queria encarnar, mas que ia ter de voltar para onde veio. Conversei bastante com essa bebê de quase 6 semanas, expliquei para ela a situação. Que o melhor para todes es envolvides (mãe, pai, irmãos e para essa bebê), o melhor era que ela não viesse. E que a partir de agora, tanto eu como o pai temos a certeza que temos 3 filhos. Que ela será parte da gente para sempre. Que embora concebida com muito amor, o destino dela seria voltar para onde veio - se é que é assim que funciona.

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