Sara

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Completei o processo há cinco dias e não consigo deixar de pensar no assunto, continuo sem ter a certeza de que foi a opção correta. Quero deixar o meu testemunho por duas razões, a primeira é para, de alguma maneira, poder ajudar outras mulheres que se vejam na minha situação, pois durante toda a experiência, rever-me nas histórias de outras mulheres ajudou-me, não digo a fazer sentir-me melhor, mas a dar-me algum conforto e, por outro lado, porque espero que escrever sobre o assunto me ajude a lidar com tudo o que tenho estado a sentir.
Eu e o pai do bebé que não irá nascer namorámos durante 2 anos e 2 meses, mas apesar de termos terminado há 9 meses, na tentativa de construirmos uma amizade e nos mantermos na vida um do outro, continuámos a envolver-nos inúmeras vezes. Ambos sentimos que, apesar de não conseguirmos estar juntos, também não conseguimos estar realmente separados. Eu não sei se aquele "grande amor", que só sentimos uma vez na vida realmente existe, mas sei que por ele senti um amor pelo qual era capaz de fazer tudo, dar a minha própria vida. Apesar das dificuldades que a nossa relação enfrentou, nunca me arrependi de nada, até agora. Vivemos coisas que eu não consigo transformar em palavras e ele esteve presente nos piores momentos da minha vida.
A nossa relação terminou a Julho do ano passado, sendo que eu parei de tomar a pílula em Novembro, na altura pensei que não nos envolveríamos mais, agora vejo o quão ingénua fui, e não pensava, tão cedo, envolver-me com alguém. Nessa altura, combinámos cortar contacto até ao meu aniversário (que seria em Dezembro), para tentar refrear a nossa necessidade de contacto físico (e até emocional) e, finalmente, seguir em frente, mas passado 3 semanas ele retomou o contacto e, com isso, tudo o resto, que durou só até ao dia anterior ao Natal, quando tivemos uma discussão e cortámos contacto até Fevereiro. Assim que voltámos a falar, voltámos quando imediatamente ao mesmo ciclo vicioso de sempre, a esta altura eu já nem sequer consigo identificar se existe algum tipo de sentimento entre nós, se é o hábito e conforto ou apenas a enorme química que sentimos desde o primeiro dia que nos conhecemos.
Desde que parei de tomar a pílula que praticávamos o coito interrompido, até ao dia 20 de Março. Tinham passado uns dias após ter estado menstruada então ambos nos distraímos e ele ejaculou dentro de mim, de acordo com o meu calendário menstrual, no primeiro dia do meu período fértil, dois dias antes da ovulação. Poucos minutos após termos terminado, ele lembrou-se desse "pormenor" e, para o tranquilizar, abri o meu calendário, sendo aí que me apercebi o quão perto da ovulação estava. Falámos sobre a possibilidade de tomar a pílula do dia seguinte, mas já tinha ouvido de amigas próximas que tinham tomado e que tinham passado mal e tive medo. Hoje, penso em todas as maneiras que poderia ter evitado esta situação e o quão irresponsável fui para chegar aqui, acho que é algo que nunca me vou conseguir perdoar. A data da minha próxima menstruação seria a 8 de abril, portanto decidimos não pensar nisso até lá.
Por volta do dia 3/4 de abril acordei a meio da noite com dores horríveis e pensei que seria a minha menstruação a chegar, até porque já sentia os meus seios mais inchados e doridos, o que me aliviou. Continuei a sentir algumas dores durante os dias seguintes, entretanto chegou o dia 8 e nada. Comecei a ficar preocupada logo dois dias depois, eu sou bastante regular e, geralmente, tenho apenas a diferença de um dia antes ou um dia depois, mas como sentia supostas dores menstruais tentava acalmar-me e pensar que o atraso se deveria ao stress (estamos em plena pandemia e no meu trabalho foram implementadas imensas novas medidas). Quando cheguei a quatro dias de atraso disse à minha melhor amiga o quão preocupada estava, embora para ele continuasse a dizer que estava tudo bem e era um simples atraso. Ela tentou tranquilizar-me mas, ao fazer algumas pesquisas percebi que as dores que pensava serem menstruais poderiam indicar que estava grávida e que combinadas com os seios doridos e inchados constituíam os primeiros sintomas de gravidez, o que me preocupou ainda mais.
Cheguei aos 7 dias de atraso, no dia 15 de abril e, na pausa de almoço do trabalho liguei à minha amiga e disse-lhe que tinha a certeza de que estava grávida, nós mulheres sentimos estas coisas e, eu creio que já sabia desde o início, só tinha medo de admitir a mim própria. Também falei com o "pai" e disse-lhe que não aguentava mais e que iria fazer o teste. Ele foi comprar o teste à farmácia e disse-me para quando saísse do trabalho ir direta para casa dele, para passar lá a noite e que faríamos o teste na manhã seguinte. Quando cheguei a casa dele estava tão nervosa que até me custou jantar, eu simplesmente não conseguiria aguentar até à manhã seguinte, então bebi o máximo de água que consegui, esperei duas horas e fiz o teste. Eu não conseguia olhar, então deixei o teste na bancada da casa de banho, fui para o quarto e pedi que ele visse o resultado. Percebi que ele estava a demorar algum tempo a sair da casa de banho, pensei logo "deu positivo", o que foi confirmado pela cara que me fez assim que entrou no quarto. Não precisou de dizer nada, desatei a chorar, simplesmente não queria acreditar...
Desde que me lembro que o meu maior desejo sempre foi ser mãe, é esse desejo que me faz traçar objetivos e lutar por eles. O desejo de um dia ser a melhor mãe possível, de não deixar faltar nada aos seres que mais vou amar no mundo, não apenas a nível monetário, mas quero poder ser o seu pilar, o lugar onde eles poderão encontrar refúgio SEMPRE. Eu não tive isso, acredito que a minha mãe tenha tentado dentro das capacidades e ferramentas que tinha, não acredito que alguém seja o tipo de mãe que ela é conscientemente, mas a verdade é que isso me deixou marcas até hoje e tenho um medo terrível de me tornar numa mãe assim...
Então o meu mundo desabou, pois eu tenho plena consciência de que não teria possibilidades de ter esta criança. Sou uma recém-licenciada, a trabalhar num supermercado, a viver num quarto numa casa partilhada com mais duas pessoas, sem qualquer hipótese de poder regressar a casa dos meus pais. Eu acredito que o pai da criança ajudasse, não tenho dúvidas nenhumas disso e, do que o conheço, assim que o nosso bebé nascesse ia amá-lo e cuidar dele, mas a realidade é que, para além de já não estarmos numa relação, ele não quer ser pai. Nenhum dos planos que ele tem para a sua vida, já bastante incompatíveis com uma relação comigo, incluíam um filho. Ele teria de ser forçado a crescer, ser mais maduro, menos egoísta e, ele não está disposto a nenhuma dessas coisas. Para além da parte financeira, seria justo trazer esta criança ao mundo, que não seria desejada pelo pai, que o veria, pelo menos inicialmente, como um obstáculo à vida que ele tanto quer construir? E se tivesse de voltar para casa dos meus pais, seria justo colocar uma criança no mundo dentro de um ambiente tão tóxico? Que tipo de mãe seria? Uma que só trabalharia, daria tudo ao filho, menos atenção? Ou que lhe daria todo o meu amor mas o faria andar a contar tostões para comer? Foi tudo isto que me passou pela cabeça durante dias e dias a fio. Por vezes sinto que foi a decisão egoísta, porque também tive as minhas motivações egoístas. Este ano iniciaria o mestrado, ia tirar a carta, começar a aproveitar a vida, tendo em conta que nunca tive oportunidade de o fazer, ia dar um passo importante na minha carreira...
Bom, eu e ele combinámos que ficaria na casa dele nos próximos tempos e que resolveríamos o assunto juntos, claro que para ele isso só significa uma coisa - aborto. Assim, no dia seguinte viemos a minha casa fazer as malas com o essencial e lá fui eu, tendo ficado lá até há dois dias atrás.
Dois dias após fazermos o teste dirigimos-nos ao hospital para marcar a consulta prévia de interrupção voluntária da gravidez, sendo que, apesar do prazo de espera não poder ultrapassar os 5 dias, fizeram-me esperar 10 dias. Foi mais ao menos nesta altura que começaram os enjoos, as dores horríveis, o cansaço extremo, enquanto tinha de ir trabalhar e fingir que tudo estava bem. Neste período ele cuidou de mim. Fazia-me as refeições, nos dias em que me senti pior ia buscar-me, fazia-me massagens na barriga quando acordava a meio da noite com dores horríveis e deu-me o carinho que eu precisava, embora não me tenha dado o mais importante...
Finalmente chegou o dia da consulta prévia, eu simplesmente não queria ir mas sabia que "tinha de o fazer". Posso dizer que foi um dos piores dias da minha vida. Eu ouvi o coração do meu bebé, e vi aquela coisinha pequenina, tão pequenina mas tão minha. Chorei logo ali, deitada na maca, despida da cintura para baixo, a sentir-me a pior pessoa do mundo pelo que ia fazer. Naquele momento pus tudo em causa. Posso dizer que fui super bem atendida, a enfermeira foi super compreensiva e tentou dar-me algum consolo, nesse aspeto tenho sorte por viver num país em que é legal e tenho acesso a todos os cuidados necessários. De seguida fui atendida por uma médica que me fez imensas perguntas e me explicou todo o procedimento, que também posso dizer que foi espetacular, eu não me senti julgada nem por um momento, senti-me compreendida e ouvida. Fui para casa mais três dias, pois legalmente temos de ter um período de 3 dias para pensar. Nesse dia tive de ir trabalhar e sinceramente nem sei como arranjei forças para isso. Nessa noite discuti com ele, atirei-lhe à cara que tudo o que eu precisava é que me dissesse que independentemente da decisão que tomasse ele iria estar lá, ao que me respondeu "A decisão é sempre tua". Até agora, depois de ter tentado explicar, ele não consegue perceber a diferença entre estas duas abordagens. Chorei a noite toda e, no dia seguinte, não consegui ir trabalhar. Voltei a pensar em todas as opções que poderia ter para não chegar àquela e senti-me miserável, sozinha, sem saída. Ele estava ali mas não estava, porque nunca, nem num milhão de anos ele, ou qualquer outro homem (ou mulher que não se tenha visto numa situação destas) iria entender o que eu estava a sentir e o que sinto agora. Passaram os três dias e chegou a segunda consulta...
Naquele dia teria de tomar o primeiro comprimido, mifepristone, que se trata de um medicamento que inibe a hormona necessária para o desenvolvimento da gravidez. Posso dizer que hesitei antes de o tomar mas, na altura, pensei que seria a única alternativa que tinha. Fui para casa com quatro comprimidos misoprostol para tomar dois dias depois. Cheguei a casa e chorei durante horas, não queria pensar que estava a matar o meu bebé, algo que queria tanto, senti que era como matar um sonho...
Nesse dia correu tudo bem, não senti nada, pelo menos não mais do que o normal (os enjoos habituais que passavam assim que comesse e as dores ocasionais). No dia seguinte (sexta-feira) passei o dia a vomitar tudo o que comia, não conseguia dormir e sentia-me doente, foi um dia quase tão mau como o seguinte.
Estava previsto que no sábado teria de acordar às 9h, tomar o pequeno-almoço, tomar um ibuprofeno e, às 10h colocar os quatro comprimidos misoprostol na bochecha, dois de cada lado e esperar. Foi-me dito que em 60% dos casos o aborto se dá nas primeiras quatro horas e, em 40% dos casos de dá entre 24 a 72 horas, eu estava assustadíssima mas, cerca de 5 a 10 minutos depois comecei logo a sentir algumas dores. Passado meia hora comecei a vomitar e, depois disso, vieram as dores horriveis que duraram cerca de 1 hora e meia, amenizando um pouco nas horas seguintes. Foram as piores dores da minha vida, senti que me arrancavam e queimavam as entranhas, eu não tinha forma de estar, nem sentada, nem deitada, nem em pé, nem de joelhos... Só queria chorar, que aquilo terminasse. Ele esteve lá o tempo todo a dar-me a mão e a dizer que ia tudo passar, para me aguentar. Pensando nisso, agradeço ter tido esse apoio, sei que há muitas mulheres que passam por este processo sozinhas e sinceramente eu não conseguiria. Passado duas horas da toma de misoprostol, assim que as dores acalmaram um pouco, levantei-me e senti vários coágulos a saírem e pensei "Já está". Fui à casa de banho para trocar o penso e entrei em pânico, sei de histórias em que mulheres conseguem identificar o embrião no meio do sangue e estava cheia de medo que isso me acontecesse. Ele entrou na casa de banho, pediu-me para baixar as cuecas e não olhar e tirou-me o penso, para que não houvesse a mínima possibilidade de eu ver aquilo. Sei que não era qualquer um que o faria, e não me vou esquecer disso, mas é como ele me disse "era o mínimo que poderia ter feito por ti no meio de toda esta situação". Acho que para além disso me poderia ter dado uma escolha, porque embora ele diga "a escolha era sempre tua", isso não é inteiramente verdade. Ele conhece-me, sabe que penso sempre nos outros primeiro, mesmo antes de pensar em mim e continuo a perguntar-me se eu realmente tomei a melhor decisão para todos, incluindo para o meu bebé, ou se tomei a melhor decisão para ele. Quando penso, não consigo chegar a nenhuma conclusão.
Este dia continua a parecer como um sonho, eu sei que aconteceu, mas é como se fosse outra realidade, como se tivesse tido uma experiência fora do corpo. Mais uma vez, é difícil de explicar a quem não passou por este processo.
Findo o processo, comecei a pensar que teria de voltar para casa, já não havia razão para estar na casa dele e, embora ele dissesse que não precisava de ir já, eu sabia que já estava "a mais", até porque ele estava a ser pressionado pelos pais para ir visitá-los e ficar uns dias e, na versão dele "já não havia mais desculpas para dar aos pais para não ir lá". Isto magoou-me imenso, pois ele estava mais preocupado no que ia dizer aos pais, do que certificar-se que, depois de tudo isto, eu estava em condições para ficar por minha conta. Isto foi a gota de água para mim, de vez!!
Eu passei três anos a fazer de tudo por esta pessoa, a passar, muitas vezes, por cima das minhas crenças, dos meus valores, de tudo. Lutei por nós, tanto pela nossa relação amorosa, como de amizade e, apesar de eu saber que ele me adora e no dia que precisar, à hora que precisar, ele estará lá, às vezes faz-me sentir que sou descartável e que não dá a mínima importância se estou presente na sua vida ou não. Ele costuma dizer que sou uma das pessoas mais importantes da vida dele e que me dá muito valor a mim e pelo que faço e fiz por ele, mas nós não vivemos de palavras e sim de atitudes, e a ele faltam-lhe muitas.
É o segundo dia que estou sozinha e não consigo parar de pensar no assunto. Por um lado acho que foi o certo, por outro sinto-me arrependida, sinto que devia ter lutado mais pelo meu bebé, pelo qual tinha a verdadeira responsabilidade. Nunca vou saber se foi a escolha correta ou não, sinto que perdi um pedaço de mim que nunca vou recuperar e, para mim, tudo mudou.
Eu nunca vou conhecer o meu bebé, mas sei que vou amá-lo todos os dias da minha vida e, se realmente existe vida para além desta, espero que o meu bebé me possa perdoar.
Espero que qualquer mulher que se veja nesta situação reflita sobre todas as hipóteses e, se houver a mínima hipótese de prosseguir com a gravidez, que o faça. É assustador sim, mas viver com este peso o resto da vida também. Se não houver qualquer maneira de o fazer, não se condenem por isso, estão a fazer o melhor que a vossa situação vos permite, tenham força. E espero que a minha história sirva de algum tipo de conforto. Não estão sozinhas, há milhões de mulheres, todos os anos, a passar por isto.
Deixo-vos com todo o meu amor e força!!

2020 Portugal

Apesar de ter corrido "tudo bem" em termos práticos, é uma experiência que eu NUNCA MAIS quero repetir, fui irresponsável e inconsciente e vou sempre culpar-me por isso. Deixou-me marcas para a vida.

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Ninguém da minha família soube, ou saberá algum dia. O pai do bebé reagiu melhor do que esperava e, apesar de não me ter apoiado no sentido de levarmos a gravidez por diante, apoiou-me durante todo o processo e cuidou de mim. A minha melhor amiga e outra amiga chegada, que já tinham passado por este processo, deram-me todo o apoio que puderam, em qualquer momento me fizeram sentir culpada e preocuparam-se em saber como estava sempre que possível. O meu chefe também foi super compreensivo, ele é uma excelente pessoa e preocupa-se muito comigo. São as únicas pessoas que sabem e nenhuma delas me fez sentir mal por isso, deram-me todo o apoio que conseguiam e podiam. Eu acho que numa situação destas, é essencial ter um sistema de apoio, sem alguém que nos aponte o dedo ou critique ou nos pressione relativamente a qualquer decisão. O meu conselho para quem passe por uma situação destas é não contar a ninguém que sintam que não vos dará o apoio necessário.

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